o rosto da terra
ou o pavimento deste t0
dei por este sítio em 2016/7. são vários os hectares de mata densa, com algumas clareiras, que envolvem o castro. vivia em lisboa ainda mas trabalhava já no meu terreno a menos de 1km. quando aqui vim pela primeira vez. foi o enquadramento da ribeira - de pedrulhos- que me chamou a atenção nesses primeiros momentos. imagem acima.
no livro memorial do convento, os personagens principais, a caminho de mafra, param nas margens desta ribeira. o contentamento que trazem é tal que vivem ali embaixo o seu amor rodeados pela beleza da vegetação, a agua límpida da ribeira passa pelas pedras e assiste, e eles, tão conscientes do paraíso onde estavam, recusam destruir uma única flor sequer. não sei em que parte da ribeira o autor pensou quando escreveu esta passagem, mas imagino-a sempre aqui, no local visto desta clareira, desta espécie de t0.
antes de chegar à clareira propriamente dita há este trilho, também ele rico em flores silvestres.
muitas das plantas/flores que aqui trago, hoje, já surgiram noutros posts, com mais ou menos detalhe. mas este post é sobre o ano a passar nestes metros quadrados, neste solo. queria dizer-vos uma coisa, que alguns terão presente e outros não: quando passamos num local como este, numa determinada altura do ano, o que vemos naquele momento não é tudo o que a terra tem para nos dar. há um número de sementes muito superior, às plantas visíveis, que está adormecido e virá à superfície na altura certa, com as condições certas - temperatura, horas de exposição solar, humidade. e isso é muito percetível aqui porque o crescimento dos vários géneros é abundante. então, fica gravado na memória- e/ou em imagens- essa abundância das florações associada às diferentes estações do ano. na minha cabeça visualizo/imagino imagens recolhidas - time lapse- de várias câmaras fixas - ao longo do ano - com o desenvolvimento de cada uma das diferentes plantas, desde o primeiro par de folhas até à floração, à formação de sementes, e depois ao aparecimento de outro género e depois outro e outro.
do inverno ao outono são diversas as plantas que aqui crescem, preenchendo o solo com diferentes cores e formas:
narcissus bulbocodium; bellis perenis; romulea bulbocodium; campanula rapunculus; lobularia marítima; saxifraga granulata; pulicaria; funcho; allium; briza maxima e minima; cistus; prospero autumnale; acis autumnalis.
as estações ficam aqui marcadas, abundantemente, por estas plantas, embora todas as mencionadas anteriormente marquem a sua presença :
inverno: narcissus bulbocodium
primavera: trifolium stellatum
verão: erygium
outono: prospero autumnale e acis autumnalis
volto a esta reflexão muitas vezes e ela ocorre-me porque, de certo modo, sou um privilegiado. ela surge no meu espírito porque tenho contacto com estes e outros metros quadrados., onde o rosto do planeta se revela, onde ele ainda 'tem a liberdade' de se 'mostrar':
- que seres seríamos se esta área fosse multiplicada pelo país?
- que indivíduos/ comunidade seríamos se estes seres silvestres aparecessem nas tv's, fossem falados e mostrados nas escolas?
-que seres seríamos se absorvêssemos a sua beleza diversa ao longo do ano, a real expressão... do planeta que habitamos?


concluir o post com a visão que temos quando, neste local, nos viramos para oeste - a ribeira de pedrulhos atravessa a aldeia onde vivo, com o mesmo nome, mistura-se com o rio sizandro e alguns kms depois chega ao atlântico- à praia azul- e, também, com a ideia de liberdade: a nossa, de vivermos estes tesouros, que a terra nos oferece gratuitamente, de os saborearmos com o olhar e com o espírito- e com responsabilidade, como os personagens de saramago. mas também a liberdade da terra - vegetação- existir, de se manifestar, através desta vida que está adormecida em si e vai acordando - mostrando o seu rosto- ao longo do ano.